sábado, 13 de novembro de 2010

"Fazes-me falta", Inês Pedrosa


"Deus procura primeiro os que sofrem antes do conhecimento específico da dor, talvez porque os outros sabem demasiado para poderem ser salvos."

"Não me levantarei da cama amanhã, depois de Lhe pedir em surdina que dê um impulso maior ao balouço, que o empurre com força até que os pés me voem para fora do calor aterrado dos lençóis. Ninguém mais vai estar à minha espera, não terei de me disfarçar de desculpas, não voltarei a iludir ou desiludir ninguém. Não voltarei à desilusão do renascimento."

"Estou sozinho. Sozinho com o coração em bocados espalhados pelas tuas imagens. Já não posso oferecer-te o meu coração numa salva de prata. Alguma vez o quis? Alguma vez o quiseste? Dava-me agora jeito um deus qualquer para moço de recados. Um deus que te afagasse os cabelos e me recordasse de como eram macios."

"Agarrei-me a essa derradeira nota do teu calor. Ficaste-me com um travo a incenso e a flores mortas. O cheiro do amor vedado que abandonáramos pela paisagem na nossa pré-história. Chamo-lhe amor para simplificar. Há palavras assim, que se dizem como calmantes. Palavras usadas em série para nos impedir de pensar. O que existia, existe entre nós, é uma ciência do desaparecimento. Comecei a desaparecer no dia em que os meus olhos se afundaram nos teus. Agora que os teus olhos se fecharam sei que não voltarás a devolver-me os meus."

"De qualquer modo, a morte espreita sobre todos os prazeres dessa cronologia a que nos agarramos para escapar ao tempo. O que somos para além do que vamos sendo? O meu além eras tu - íman da minha íntima, impessoal temporalidade. Redenção dos males que me amputaram. Tu. Agora puro vapor do universo."

"Fazes-me falta. Mas a vida não é mais que do que essa sucessão de faltas que nos animam. A tua morte alivia-me do medo de morrer. Contigo fora de jogo, diminui o interesse da parada. E se tu morreste, também eu serei capaz de morrer, sem que as ondas nem o céu nem o silêncio se transtornem. Cair em ti, cada vez mais longe da mísera ficção de mim."

"Vive-se melhor a inventar a verdade todos os dias, dizem-me. Faz de conta que não morreste, faz lá."

"Como é que eu mato a tua morte?"

"Fazes-me falta, merda! - já te disse?"

"Quantos dias demorarei a esquecer o teu rosto? Lembro-te a cada minuto. Parcela a parcela para não te perder."

"Eu só queria ver de que material era feito o teu amor por mim. Precisava de escangalhar o teu coração para o fazer encaixar no meu. E agora tenho de o desencaixar outra vez para sair deste limbo. Mas não sei como. Sem o teu coração não consigo amar - não me abandones outra vez. Logo eu que amava o mundo inteiro, não é? Amar em abstracto é muito mais ágil que amar em concreto."

"A imortalidade é irrelevante; deste lado da morte é a mortalidade que cintila: saber-me mortal dava densidade e cor às pedras do meu caminho; porque eu era mortal, a lua lembrava-me o amor e o mistério, e no céu inundado de estrelas estremecia o meu desejo de futuro. A única substância incompreensível é a mortalidade."

"Quando as coisas deixam de durar alteram-se. O simples facto de deixarem de ser altera-as, por mais que procuremos fazê-las estancar. Apetecia-me ter gravado fitas com as nossas conversas, filmes com os nossos passeios. Mas depois, quando olhasse para o filme, eu seria outro. Um outro a matutar numa imagem que já não era eu, que já não eras tu, apenas aura - essa aura que os filmes fabricam, luz do que já não é, do que já nunca fomos, mesmo que o tenhamos sido."

"És agora apenas uma fotografia ao lado da minha insónia. Uma memória que me fala sobretudo, como todas as memórias, daquilo que não existiu. Neste fotografia te esqueço. Meticulosamente, de cada vez que me esforço por reter-te e começo a inventar-te. Tudo em ti tem asas agora - o teu riso, os teus passos. Até nas poucas frases que recordo de ti há um restolhar de penas. E deslizo para esta solidão demasiado humana de não poder voltar a ser sozinho, como era quando tu existias, nesta mesma cidade, e eu já nem sequer pensava em ti."

"Tentativas, tentações de ampliar o conhecimento da vida, quando a vida só se deixa conhecer pela porta escura da ignorância, do desentendimento. Das energias assimétricas que nos permitiram isso a que chamamos humanidade - resíduo de resíduos."

"Organizei a minha existência por iluminações. Dessa forma, todo o amor e todas as vitórias me eram permitidas: já estava morto. Estrangulava as paixões no berço, o que teve a vantagem de as tornar fulgurantes... e a desvantagem de as tornar estéreis."

"Há quanto tempo não me arde o coração?"

"Morri tantas vezes antes de morrer - morri sempre que o amor parava, e o amor estava sempre a parar dentro de mim. Parava e crescia, comia tudo o que eu sabia. "

"Há tão pouca realidade numa vida - bocados desagarrados de história, pedras voando pelo ar, chocando na estratosfera, curto-circuitando os nossos propósitos. Amava esse curto-circuito, provocava-o. Para que a perfeição pudesse atingir.se com um só jacto de riso - louca brincadeira de um Deus trocista."

"A surdez para o sofrimento dos acasos permanece no centro da nossa tão sofisticada ciência animal."

"Esqueceste-te de me deixar esse tesouro manchado a que chamam fé. Não vejo o teu sangue no céu poente - apenas o sangue da minha infinita imanência onde tu já não estás."

"Era, às vezes, muito difícil gostar de ti. Tu fazias de propósito, gostavas que fosse cada vez mais difícil gostar de ti. Continua a ser, ou não estaria ainda no teu caminho."

"Ainda terei tempo para te esquecer? O teu riso é, sequer, esquecível?"

"A falta que me faz um céu onde te possa instalar. Mas a noite fecha o escuro sobre a minha tentativa de pensar. Talvez ainda tenhas razão, agora que nada tens."

"Talvez não haja idades, só mortos ressoando pelos canais do Tempo, mortos que, como ímans, aproximam e afastam os que ainda não morreram. Tu trazias tantos mortos na sombra do teu sorriso. Um tecido de mortos; a tua fúria de apaixonada era como uma pira funerária infinita, a tua entrega como a dos corpos às labaredas, num saber de cinzas."

"Um bocado de mim treme ainda de paixão atrás duma porta onde já não mora ninguém, onde eu nunca morei. Mas eu não sabia. E neste noante já nada posso contra essa ignorância. Imaginas um não-corpo a implorar beijos, saliva, suor e pele?"

"Não procuro nenhum dos outros homens que amei. Talvez porque nenhum deles tenha podido guardar mais que o sabor breve do meu corpo. Amavam a novidade do nosso prazer, o meu sorriso, a minha paixão, o que eu tinha para dar."

"É esse teu amor que agora me faz falta - o sujo, quotidiano amor dos momentos maus, das frases adversas, das ausências."

"Tão efémeras, as cumplicidades radiosas. Encontros de pele, de ideias, de atmosferas, flutuando como nuvens para o paraíso do esquecimento. Acreditava que o sentido da vida estava nesses encontros. Tu roubas-me o sentido, viciei-me nesse roubo, talvez seja ainda um vício do sentido, o supremo."

"Inventavas até coisas más para me dizer, gostavas de me ver perdida, sem resposta. Mas nunca tocaste no coração da minha fraqueza - nunca me disseste: «Tu também mentes e falhas, tu também trais e foges, tu também não és perfeita.»"

"Dei-me a tudo o que tu amavas e fiz de conta que era inocente, ou, pelo menos, perversa, para não te perder. Dei-me depois ao ressentimento de não te ter, à maledicência de ti, por não saber ser-te indiferente. Dou-te agora também a minha morte."

"Estou cansado de ti. Cansado de estar cansado de ti. Cansavas-me muito - não paravas de ser, existias demasiado em tudo, solicitavas-me a todo o momento."

"Claro que a amava. Talvez lhe dedicasse um amor semelhante ao que ela tinha por mim; uma embriaguez de auto-complacência."

"A tua alegria era um vírus incurável. Refilavas muito e espalhavas pó de ouro em tudo o que tocavas. Em contrapartida, eras temperamental e chorosa, hiper-sensível. E tinhas uma excessiva tendência para a vingança que acabou por se me colar à pele. Mas até aquilo a que eu mais resistia em ti se tornou carne da minha carne. Adoptei-te amores e ódios. Nunca me cansei de ti; cansei-me apenas do teu cansaço de ti mesma."

"Terei saudades de ti, ou da inocência que eu tinha quando te conheci? O sofrimento antecipa o prazer da morte, dizem os vivos, para dizer alguma coisa, enquanto a face inexorável se aproxima. E a dor vai despedindo as pessoas de si mesmas."

"Não posso encostar a minha mão ao teu rosto agora - e já nada sei do que pensas. Se ao menos olhasses para o céu - se nos teus olhos se ateasse a minha lonjura."

"Um dia quase saíste do meu coração."

"Só vivendo sobre a mudança se podia evitar a dor, só contornando a monstruosa perfeição do tempo se podia vencê-lo. Assim pensava, e enganei-me, porque o tempo não é pensável. Concentrei-me em deixar de ser para poder ser tudo, em esquecer para dominar a existência. Eu sou o tempo; sou nada, o nada veloz e imoldável que molda o corpo do tempo. Estou esgotado de correr contra a dor, contra a memória, contra a infância, contra o ódio e o amor. Criei uma meta de tranquilidade que se afasta tanto mais quanto mais eu corro para ela. Não há paz no instante, e eu vivo de instante para instante. Começo a temer que a paz se alimente do sangue da paixão que abjurei."

"Ensina-me a sofrer. Ensina-me uma dor que não passe, que possa fulgir no sulco das lágrimas quando as lágrimas tiverem secado, que possa deixar um lastro sobre a mesa em que a minha cabeça pousou, desesperada. Ensina-me a mansidão desse desespero onde fervem as alegrias passadas e futuras, o esplendor do êxtase mortal. Ensina-me a tua morte."

"A opacidade do mal é interior. Um muro desconhecido dentro do coração. Nunca vemos o mal que fazemos, só o mal que nos fazem se torna claro."

"Nesse tempo, o futuro era o que excedia a imaginação. Agora, o futuro não existe; o tempo foi substituído pelo espaço onde tudo o que foi converge com tudo o que será. A isto se chama ser contemporâneo. Viver na presunção pós-moderna do presente infinito, entender tudo sem saber a fundo de nada."

"Os seres que criáramos precisavam de nos matar para sobreviver. E nós deixámo-nos matar, porque está na natureza do amor estilhaçar-se sem ruído, desfazer-se em vidros e pesar-nos no lugar do coração até que a morte o restaure."

"Tu não querias mudar o mundo; querias um mundo perfeito em que os afectos fossem sólidos como casa. Mas também as casas morrem. Que farias, quando descobrisses que o mundo nunca muda, ou pelo menos não muda como tu queres?"

"O azul do céu muda para rosa, laranja, depois será negro outra vez. É a esta hora dilacerante, a hora a que os mortos voltam a cheirar a vivos para ficarem um pouco mais mortos. Fazes-me falta. Vejo-te passar diante deste café, na esquina da minha rua, onde nunca estive contigo. A esta hora vejo-te muitas vezes. Há tantas raparigas parecidas contigo, e nenhuma delas és tu. Vejo-te também no espelho ao meu lado, dentro dos meus olhos, que parecem teus, até nesse jeito de procurarem os espelhos."

"Encosto-me à porta da casa onde deixei um dia a minha alma morta, julgando que se tratava apenas de pele. A porta da casa onde umas cem vezes o amor me abraçou a bom recato, disfarçado de sexo. Ele está lá, deitado no chão onde começou a matar-me, muitos anos antes da minha morte."

"Amei-te mal. Não fui tudo o que sonhavas de mim. Se ao menos tivesses levado o meu mau amor contigo. Mas insistes em ficar comigo, em atacar-me com os dentes cerrados da loucura. O teu silêncio esmaga-me."

"Há cem milhões de estrelas, só na nossa galáxia. E em todas elas o teu olhar existe, cintilação fria da mentira de mim. Afastei-me de ti porque éramos imortais; voltaríamos sempre um ao outro."